domingo, 30 de outubro de 2016




"O que é que nos assusta tanto na morte?

O que nos mete medo, o que nos congela perante aquele momento, é a ideia de que naquele instante desaparecerá tudo aquilo a que nós estamos tão apegados.

Identificamo-nos com a identidade - jornalista, advogado, director de um banco - e a ideia que tudo isto desapareça, que deixemos de ser o grande jornalista, o bom director do banco, que a morte leve tudo isto, transtorna-nos. Nós possuímos a bicicleta, o automóvel, o belo quadro que comprámos com as poupanças de uma vida inteira, um campo, uma casinha na praia. É nossa! E agora morremos e perdemo-la. A razão porque temos tanto medo da morte é que com ela é preciso renunciar a tudo o que estávamos afeiçoados: propriedades, desejos, identidades. Eu já fiz isso. Nos últimos anos, dediquei-me a deitar ao mar tudo isto e agora já não há nada a que esteja apegado.

Isto porque, obviamente, nós não somos o nosso nome, nós não somos a nossa profissão, não somos a casinha de praia que temos. E se aprendermos a morrer enquanto vivemos, como bem nos ensinaram os sábios do passado - os sufis, os gregos, os nossos adorados rishis dos Himalaias -, então habituamo-nos a não nos reconhecermos nestas coisas, mas sim a reconhecermos o valor extremamente limitado, transitório, ridículo, impermanente. Se um dia comprámos uma casa na praia - vrumm, é levada pela maré! Se um filho, que foi meu por tanto tempo e a quem dediquei pensamentos, às vezes também sofrimentos e angústias, sai de casa, cai-lhe um tijolo em cima e - vrumm, acabou! Então percebemos que não é possível sermos aquelas coisas que tão simplesmente desaparecem.

E se, ao vivermos, começamos a perceber que não somos aquelas coisas, então, aos poucos, cansamo-nos e abandonamo-las. Abandonamos também o que nos parece mais precioso, como o amor que eu tenho pela tua mãe. Amei a tua mãe ao longo dos quarenta e sete anos que estivemos juntos e quando digo que estou cansado, não quero dizer que já não a amo, mas que este amor já não é uma escravidão; que já não estou dependente deste amor; que estou também desapegado dele. Este amor é parte da minha vida, mas eu não sou aquele amor.

Sou tantas outras coisas... ou talvez nada. Mas não sou aquilo. E a ideia de que ao morrer perco aquele amor, perco esta casa, perco-te a ti e à tua irmã, perco a minha identidade, já não me preocupa, não me mete nada medo, porque já me habituei. E para isto, os Himalaias, a solidão lá em cima, a natureza, o destino desta doença que me deu a oportunidade para reflectir sobre tudo isto foram grandes mestres.

Outra coisa que me parece fundamental na vida de um homem que cresce e que amadurece, como espero que me tenha acontecido, é a relação com os desejos. Os desejos são o nosso maior impulso. Se Colombo não tivesse desejado encontrar um novo caminho para as Índias, não teria descoberto a América. Todo o progresso, se quisermos chamar-lhe assim, ou o retrocesso, toda a civilização ou a incivilização do Homem, deve-se ao desejo. Desejo de qualquer tipo, desde o mais simples, o carnal, o desejo de possuir a carne de outra pessoa.

O desejo é um grande impulso, não o nego. É importante e determinou a História da humanidade. Mas se começarmos a ver bem, mais uma vez, o que são estes desejos, estes desejos dos quais nunca fugimos? Ainda por cima, nesta nossa sociedade de hoje que nos leva apenas a desejar e, no meio dos desejos, a escolher só os mais banais, os materiais, por outras palavras, os de supermercado. O desejo dessas escolhas é inútil, é banal, é irrisório.

O verdadeiro desejo, se alguém quiser um, é o de ser ele próprio. A única coisa que uma pessoa pode desejar é já não ter mais escolhas, porque a verdadeira escolha não é entre duas pastas de dentes, entre duas mulheres, entre dois carros. A verdadeira escolha é a de ser quem se é. Se nos habituarmos ou fizermos exercícios, se pensarmos, pensarmos!, apercebemo-nos de que aqueles desejos são uma forma de escravidão. Porque quanto mais desejamos, mais limitações criamos. Se desejarmos uma coisa a ponto de não pensarmos em mais nada, não fazemos mais nada, tornamo-nos escravos daquele desejo.

Então podemos, numa idade madura, mais adulta, começar a ver isto tudo... e desatamos a rir dos desejos que temos, a rir dos desejos que tivemos, a rir ao ver que estes desejos não servem para nada, que são efémeros como o tudo o resto na vida. Assim começamos a aprender a tirá-los, a tirá-los da frente. Incluindo o último desejo, comum a todos, o da longevidade. Uma pessoa diz: «Está bem, não quero mais dinheiro, não quero mais fama, não quero comprar mais nada; mas quero pelo menos um comprimido que me faça viver mais dez anos!»

Também já não tenho este desejo, é que não o tenho mesmo. 

Tenho sorte. Porque os anos de solidão naquela casinha nos Himalaias mostraram-me que não tinha nada para desejar. Precisava de um pouco de água para beber e estava ali na fonte, onde os animais bebiam. Comia um pouco de arroz e alguns legumes cozidos ao lume. Que outros desejos podia ter? Não o de ir ao cinema ver o último filme. Quero lá saber! O que muda na minha vida? Nada, a este ponto, nada. O que agora está à minha frente é talvez a coisa mais estranha, curiosa, nova que alguma vez me aconteceu.

Por isso digo que já não tenho vontade de estar nesta vida, porque esta vida já não me suscita curiosidade. Vi-a por fora e por dentro, vi-a por todos os lados, e os desejos que me poderia suscitar já não me interessam. Então a morte torna-se mesmo... a única coisa nova que me pode acontecer, porque nunca a vi, nunca a vivi. Só a vi nos outros." - Tiziano Terzani 

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