segunda-feira, 28 de dezembro de 2015



"(...) Para o casal, a história é outra. Que há os fiéis, e outros que o não são, é uma verdade de facto, mas que não parece, ou já não parece, atingir o essencial. Pelo menos se entendermos por fidelidade, neste sentido restrito, o uso exclusivo, mutuamente exclusivo, do corpo do outro. Porque haveríamos de amar, de desejar uma só pessoa? Ser fiel às suas ideias não é (felizmente!) ter uma só, nem ser fiel em amizade supõe que tenhamos um único amigo. Fidelidade, neste campo, não é exclusividade. Porque não haveria de ser assim no amor? Em que nome se pretende o gozo exclusivo de outrem? É possível, acredito mesmo que seja mais cómodo, mais seguro, mais fácil e, afinal, talvez mais feliz, enquanto dura o amor. Mas nem a moral nem o amor me parecem ter muito que ver com isto. Cabe a cada qual escolher, segundo a sua força ou as suas fraquezas. A cada qual, ou melhor, a cada casal: a verdade é um valor mais alto do que a exclusividade e o amor parece-me ser menos traído pelo amor (o outro amor) do que pela mentira. Outros pensarão o contrário, e eu mesmo talvez, noutra altura. O essencial não me parece residir nisto. Há casais livres que são fiéis à sua maneira (fiéis ao seu amor, à sua palavra, à sua liberdade comum...). E muitos outros, estritamente fiéis, tristemente fiéis, em que cada um dos dois teria preferido não o ser... O problema aqui é menos a fidelidade do que o ciúme, é menos o amor do que o sofrimento. Mas isso não me interessa. Fidelidade não é compaixão. Trata-se de duas virtudes? Justamente, mas são duas. Não fazer sofrer é uma coisa; não trair é outra, e a isso se chama fidelidade. 
O essencial é saber o que faz de um casal um casal. O simples encontro sexual, ainda que repetido, não pode evidentemente bastar. Nem tão-pouco a simples coabitação, mesmo duradoura. O casal, no sentido em que o considero, supõe o amor e a duração. E, portanto, supõe a fidelidade, porque o amor só dura se prolongar a paixão (demasiado breve para criar e que só serve para o desfazer!) através da memória e da vontade. É, sem dúvida, o que significa o casamento, e que o divórcio vem interromper. E mesmo assim... Uma amiga minha, que se divorciou e voltou a casar, dizia-me que se mantinha de certa forma fiel ao primeiro marido. «Quer dizer», explicava-me ela, «ao que vivemos juntos, à nossa história, ao nosso amor, eu não quero renegar tudo isto...». Nenhum casal, por maioria de razão, poderia perdurar sem esta fidelidade, em cada um, à sua história comum, sem este misto de confiança e de gratidão graças ao qual os casais felizes - e há alguns - são tão comoventes quando envelhecem, mais até do que os apaixonados principiantes que, muitas vezes, mais não fazem do que sonhar o seu amor. Esta fidelidade parece-me preciosa, mais preciosa que a outra, e mais essencial para o casal. Que o amor se acalme ou decline é sempre o mais provável e é inútil afligir-se com isso. Mas quer as pessoas se separem ou continuem a viver juntas, o casal só continuará a sê-lo graças a esta fidelidade ao amor dado e recebido, ao amor partilhado e à recordação voluntária e reconhecida deste amor. Fidelidade é amor fiel, dizia, e também o casal, mesmo «moderno», mesmo «livre». A fidelidade é o amor mantido daquilo que aconteceu, amor do amor, amor presente (e voluntário, e voluntariamente mantido) do amor passado. Fidelidade é o amor fiel, e fiel em primeiro lugar ao amor.
Como te jurar amar-te sempre ou não amar mais ninguém? Quem pode jurar os seus sentimentos? E, quando já não existe amor, de que serve manter a sua ficção, os seus encargos ou as suas exigências? Mas isso não é razão para renegar o que aconteceu. Acaso precisamos de trair o passado para amar o presente? Juro-te, não amar-te sempre, mas ser sempre fiel ao amor que vivemos.
O amor infiel não é amor livre: é amor esquecido, renegado, que esquece ou detesta o que amou e que, portanto, se esquece ou detesta a si mesmo. Mas acaso é ainda amor?
Ama-me enquanto quiseres, meu amor, mas não nos esqueças." - André Comte-Sponville 

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