sexta-feira, 9 de setembro de 2016




"O mais perto que o meu coração esteve perto de rebentar nos últimos tempos foi no dia em que a minha filha mais nova chegou a casa vinda da escola e correu para mim, com o rosto tenso de expectativa, a perguntar: «Ainda há aquela guerra no Afeganistão?»
Como se o mundo fosse um lugar em que, numa tarde, enquanto os alunos do jardim de infância se esforçavam para dominar a letra L, ele decidisse depor as suas armas. Tentei manter as lágrimas afastadas dos meus olhos. Disse-lhe que tinha pena, mas sim, ainda estavam em guerra.
Ela disse: «Se as pessoas só vão continuar a fazer isso, quem me dera nunca ter nascido.»
Sentei-me no chão e dei-lhe um abraço apertado, para impedir que o meu próprio espírito se esvaísse pelas solas dos meus pés. Não sei o que as outras mães dizem nestes momentos; suponho que algumas prometam que só os maus é que estão a ficar feridos. Quem me dera acreditar eu própria nessa história. Mas as minhas filhas nunca foram pessoas a quem pudesse mentir. A minha melhor vingança contra toda a desonestidade e ódio no mundo, parece-me a mim, vai ser criar pelo meio deles estas crianças honestas e amorosas.
Eu perguntei-lhe: «Estás mesmo a falar a sério? Gostavas de nunca ter conhecido o papá, ou a mim, ou à tua irmã? De nunca teres tido a oportunidade de nos abraçares, ou de nós te lermos livros, ou de te aconchegarmos a roupa à noite? De nunca teres tomado conta das tuas galinhas e de apanhares os seus ovos, de nunca teres visto um arco-íris?»
Claro que ela disse, suficientemente cedo, que estava contente por estar viva. E tenho a certeza de que isso é verdade, quando a vejo atirar-se de corpo e alma para uma vida praticamente sem fardos. Mas compreendi naquele dia que estamos todos no mesmo barco. É a mesma luta para cada um de nós, e a mesma saída: o totalmente simples, infinitamente sensato, derradeiramente desafiante acto de amar uma coisa e depois a outra, amando o nosso caminho de volta à vida.
Antigamente, em muitos dias, podia fechar os olhos e sentir-me perfeitamente feliz. Ultimamente, tenho-me perguntado se esse sentimento alguma vez voltará. É uma coisa em que vale a pena pensar, mas talvez o ser-se perfeitamente feliz não seja realmente a questão. Talvez seja apenas um sonho moderno americano da questão, enquanto a medida mais verdadeira da humanidade é a distância que temos de percorrer nas nossas vidas, vezes sem conta, «entre dois extremos de paixão - alegria e sofrimento», como disse Shakespeare. Por muito que tenha perdido, o que me resta é o facto de ainda poder falar para nomear as coisas que amo. E posso procurar segurança ao oferecer-me para as coisas menos perdíveis do mundo.
Apaixonei-me pela liberdade apesar de tudo, e pelo direito de uma mulher dar um passo em frente, equipada com botas justas e opiniões que podem interessar. Os tesouros que trago mais perto do coração são coisas que não podem ser minhas: a curva da testa de uma criança de cinco anos de perfil e a expectativa vulnerável na mão que alcança a minha quando atravessamos a rua. O canto de alvorada dos pássaros numa floresta. A intensidade da luz quinze minutos antes do fim do dia; a lavagem de cor de um pôr-do-sol nas montanhas; a esfera madura daquele mesmo sol baixo num céu poeirento numa fotografia impressionante do Afeganistão.
Nos meus momentos mais difíceis, tenho de caminhar, por vezes sozinha, nalgum lugar verde. Outras pessoas devem partilhar este ritual. Para alguns, suponho que deva ser o caminho através de um conjunto particular de ruas da cidade, uma arquitectura reconfortante; para mim, é a necessidade de olhar para a água em movimento até que a minha mente não descanse em nada. Então posso ir para casa. Poso limpar o arbusto de uma parte negligenciada do jardim, trabalhando devagar até perceber que existe um pequeno lugar que posso tornar certo para a minha família. Posso plantar alguma coisa como um acto de fé no próprio tempo, um voto de que iremos ter, de certeza absoluta, um Outono e um Inverno este ano, que será seguido novamente pela Primavera. Isto não é um fim em si mesmo, mas sim um princípio. Trabalho até que a minha mente possa ultrapassar o seu limite, puxando este polo central da minha tristeza, esquecendo-o por um minuto ou dois enquanto pondero uma reunião na escola na semana seguinte, o projecto de conservação da linha divisória das águas empreendido pela nossa vizinhança, o mercado agrícola que organizou no ano passado: o bem que se torna possível quando um pequeno grupo de cidadãos conscienciosos se dedica a ele. E, de facto, como disse Margaret Mead, essa é a única coisa que realmente resulta sempre em mudança. Pequena mudança, pequenos milagres - estes são as unidades monetárias da minha persistência e, em última instância, da minha vida. É uma economia fiável.
As urgências políticas vão e vêm, mas é uma vocação suficientemente justa acender um fósforo depois do outro contra o escuro isolamento, quando a arrogância espectacular governa e tenta impor a esperança no esconderijo. Parece-me a mim que ainda há tanto a dizer que era melhor eu dar um grito através da vedação. Tenho histórias de coisas em que acredito: um rio persistente, uma floresta ao cair da noite, a religião dentro de uma semente, o espanto de bater de asas quando uma centelha de vida vermelha vinda da escuridão voa contra toda a razão. Uma criança, uma ursa. Eu gostaria de falar de pequenas maravilhas e da possibilidade de ganhar coragem." - Barbara Kingsolver 

Sem comentários:

Enviar um comentário