quinta-feira, 29 de setembro de 2016




"O que quer que se possa chamar mais ao «lar», ele deve ser certamente uma premissa humana fundamental. Em todas as culturas do mundo, o direito a viver num lar é provavelmente a primeira condição da cidadania e humanidade. A condição de sem-abrigo é uma aberração. Pode acontecer em qualquer lugar de tempos a tempos, é claro, mas, quando olho com atenção para o mundo, vejo muito poucos lugares em que residam uma classe inteira e permanente de pessoas rotuladas como «sem-abrigo». Nem nos lugares mais pobres em que já vivi, nem mesmo numa aldeia africana onde toda a gente que eu conhecia tinha apenas uma camisa (na melhor das hipóteses) e a maioria nunca tinha tocado num automóvel. Porque mesmo aí, desde que a estrutura social permaneça intacta, as pessoas sem recursos são acolhidas pelas suas famílias. Mesmo que alguém se desmorone completamente e tenha de ir para o hospital, o que significa uma caminhada a pé de dezenas de quilómetros ou mais, a família inteira acompanha-o para se certificar de que o doente está a ser bem tratado. O «lar», neste caso, torna-se portátil. Eu sei disto porque quando era criança vivi numa aldeia africana que albergava o mais pequeno hospital de cimento da região. Sempre que passava por lá, os animados terrenos do hospital nunca deixaram de me impressionar. Era apenas uma praça de terra batida, talvez esticando todos os seus cantos até ao tamanho de um quarteirão de cidade, mas era sempre um sítio movimentado, onde dezenas de famílias acampavam à volta das suas fogueiras para cozinhar enquanto esperavam que algum familiar fizesse uma operação, tivesse um bebé ou morresse. Enquanto isso, passavam o tempo a estardalhar com crianças que corriam por ali sem nada vestido a não ser correntes de contas à volta da barriga. No resto da minha vida, nunca mais testemunhei outra cena tão solidamente baseada tanto na pobreza como na segurança. Não desejo glorificar a metade empobrecida desta equação; estas crianças tinham barrigas inchadas devido ao kwashiorkor, e tinham parasitas. Mas também tinham famílias que não podiam esquecer em nenhuma circunstância, nem mesmo abandonar, nem ser abandonadas por elas, por mais que pudessem cair em loucura ou doença ou tempos difíceis. Não acredito que a palavra sem-abrigo, tal como é usada na nossa língua, possa ser traduzida lá.
Na maior parte das culturas que conheci ou sobre as quais li, a provisão de um lar é considerada como a principal função e obrigação da família humana. Em países ricos que não o nosso, tal como o Japão, os membros da Comunidade Europeia e o Canadá, o Estado também assume esta obrigação; os seus cidadãos pagam impostos mais altos do que nós e portanto as pessoas abastadas vivem com um pouco menos. De um modo geral, os cidadãos destes países têm casas mais pequenas, carros mais pequenos e apetites por bens de consumo mais pequenos do que nós. E para equilibrar, têm um tipo de segurança desconhecida para os cidadãos dos EUA - ou seja, a promessa de que o Estado irá proteger todos os cidadãos da desgraça. Uma boa educação, bons cuidados de saúde e boa protecção estão bastante bem garantidos, mesmo para aqueles que têm doenças incapacitantes ou algum azar. A Revisão da Carta Social Europeia do Conselho da Europa (1996) declara no Artigo 34: «De forma a combater a exclusão social e a pobreza, a União reconhece e respeita o direito à assistência social e domiciliária para assegurar uma existência decente para todos aqueles a quem faltam recursos suficientes.» Mais recentemente, na Cimeira de Lisboa, em Março de 2000, os líderes dos quinze países da União Europeia concordaram em desenvolver uma estratégia comum para fornecer acesso universal a uma habitação decente e com saneamento. Estas nações civilizadas concordaram há muito tempo que a existência de sem-abrigo não é simplesmente uma opção. 
Onde é que os sem-abrigo realmente existem? Na fronteira entre o Congo e o Ruanda, países que estão envolvidos numa prolongada guerra civil. No Kosovo, pela mesma razão. Na Índia, sempre que a construção de uma enorme barragem inundou aldeias. No Quénia e noutras partes de África, onde grandes números de crianças perderam as suas famílias inteiras ampliadas para a SIDA. Muitos tornaram-se também sem-abrigo na Somália durante a seca, nas Filipinas depois da erupção vulcânica, na Cidade do México depois do terramoto. Por outras palavras, a existência dos sem-abrigo como um problema significativo ocorre em países fustigados pela guerra, pela fome, pela doença e pelos desastres naturais. E aqui, nos EUA. Porque é que não estamos a prosseguir - connosco, com os nossos vizinhos e com as pessoas que nos representam - com a conversa que começa com a pergunta: Que raio é que há de errado connosco? 
Este é um país especial, já o sabemos. Há coisas na maneira como organizamos a nossa sociedade que o tornam único no planeta. Acreditamos na liberdade, na igualdade e em tudo o que permite que sejam  construídos extravagantes empreendimentos imobiliários em redor da minha cidade natal na proporção de uma nova inauguração por semana («Casas-modelo, 6 quartos, garagem para 3 carros, com entradas de apenas 180 dólares!»), enquanto 20 por cento das crianças dos livros de registos do meu distrito vivem abaixo do nível de pobreza. Por todo o país, embora os sem-abrigo sejam uma população difícil de recensear, podemos estar certos de que eles são mais de um milhão. Como é que o resto do mundo mantém uma cara séria quando vamos invadi-lo no nosso mais recente cavalo branco da Operação-deste-ou-daquele-tipo-de-Justiça, e toda a gente pode ver perfeitamente como nos comportamos em casa? É em casa que toda a justiça começa." - Barbara Kingsolver 

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