domingo, 2 de outubro de 2016




"Eu sou apenas uma gota neste rio de lágrimas e crença. Por vezes o meu coração fica preso na garganta e eu tenho de parar por um segundo com a mão na maçaneta de uma porta ou no metal frio de uma chave, reunir no meu coração a misericórdia de tudo aquilo em que temos de acreditar, e dizer a minha própria oração por todos nós - que encontremos o caminho através de cada hora das nossas vidas que tenham sido dignas da missão. 
Consequentemente, considero mais difícil suportar adversários no outro extremo do espectro: aqueles que não podiam estar-se mais nas tintas, que não querem ou não conseguem sondar as profundidades honestas do amor e do sofrimento, que preferem não se envolver na montada de um touro pela vida em favor do beliche. Estes são aqueles que dizem que é ridículo imaginar que o mundo pudesse transformar-se numa coisa melhor do que esta. A abordagem mais sofisticada, sugerem eles, é aceitar que estamos todos numa alegre viagem pelas entranhas da catástrofe, por isso calem-se e conduzam. 
Eu combato isso; combato-o como se estivesse a afogar-me. Quando caio nesta sensação de que sou um exército de uma pessoa a destacar-me na vasta planície agitando a minha pequena bandeira de esperança, chamo um amigo ou dois e ofereço-me para fazer o jantar para nós. Lembramo-nos a nós mesmos que não estamos afastados da multidão, nós somos uma multidão. Somos uma fogueira na pradaria, um coro de igreja, uma nora maior no acorde americano, e a nora dominante na canção do mundo: um milhão de estudantes norte-americanos a rejeitar a tirania do logótipo e da loja de camisolas por trás dele; um milhar de agricultores na Índia deitados no seu solo para impedir que seja plantado com uma colheita que roubaria a sua história e o seu futuro; uma centena de pastores no sul de França a desafiar uma hegemonia de fast food ao produzirem queijo em grutas de calcário exactamente como faziam os seus bisavôs; anciães tribais de leste a oeste a convidarem a paz a entrar no mundo através dos seus dançarinos das nuvens hopi e dos seus dançarinos sufi; as Mulheres de Negro que se mantêm em silêncio eloquente em todos os continentes, recusando as guerras que comeriam vivos os seus filhos e filhas. Nós somos o teatro de rua, a alegria sincera dos corações das crianças, a literatura da sabedoria de amanhã chegada hoje, mesmo a tempo. Eu estou com a Emma Goldman: A nossa revolução vai ter dança - e comida excelente. Consequentemente, a escolha da vida em detrimento da morte é boa de mais para resistir. 
Quando tudo o resto falha e eu me esqueço disto, naquelas noites tardias em que todas as luzes já se apagaram na minha alma, entro no meu escritório e leio o outro correio, as pilhas de notas de amor que ultrapassam as  cartas de ódio na proporção de duzentas para uma. (Porque é que o louvor entra por um ouvido e sai por outro, para tantos de nós, enquanto memorizamos as críticas palavra por palavra? Pelas mesma razão que a rádio toca duzentas canções sobre solidão por cada uma sobre reuniões de família. Nós tiramos o chapéu ao desgosto.) Sou sustentada pela bondade de estranhos, que me mandam frequentemente presentes sem mais nem menos: uma aguarela de uma estante querida, um livro extraordinário sobre bichos-da-seda da América do Norte, um conto precioso de maravilha ou bondade, ou apenas a perfeição da gratidão, expressa de forma simples. Não posso de maneira nenhuma sentir-me sozinha quando tanta gente - desde prisioneiros a presidentes, mas principalmente gente comum - aceitou as minhas palavras nas suas vidas da mesma forma que aceitariam a companhia de uma amigo, que me diz calmamente no parque ou na mercearia, quando menos espero: «Obrigado. Continue a escrever.» E assim farei, e quando preciso da minha corda salva-vidas de palavras, leio Walt Whitman, George Eliot, John Steinbeck, Arundhati Roy - pessoas que aprenderam a olhar a vida nos olhos e a amá-la de volta.
Eu combato o afogamento, sabendo que nunca posso entrar no pântano do cinismo porque, se o fizer, posso nunca mais sair de lá. Eu não sou assim. Tenho filhas que são mais valiosas para mim do que a minha vida, e cada molécula em mim quer prometer-lhes que iremos ultrapassar isto. Não vamos explodir com o mundo antes de elas terem a oportunidade de fazerem todas as coisas que os adultos fazem nesta festa tão animada: estarem de pé em cima dos dois pés, partirem o coração, ultrapassarem isso, votarem, guiarem um carro, não guiarem um carro, ficarem exaustas a fazer uma coisa de que se orgulham, ouvir a estação de rádio que vocês querem, abrirem as portas do coração, dançarem na mesa, fazerem uma cena, serem ridículas, serem extraordinárias, serem mais fortes do que pensavam, fazerem um sacrifício que tem importância, descobrirem do que são feitas, cozinharem uma refeição perfeita, lerem um livro perfeito, beijarem durante uma hora, apaixonarem-se para sempre, fazerem amor, fazerem um bebé, permanecerem perante a vossa própria criança nua a chorar de medo e de espanto pelo milagre.
Se eu tivesse de fazer apenas uma lei, seria a de que os homens que tomam as decisões de lançar bombas tivessem primeiro, de todas as vezes, de passar um dia inteiro a tomar conta de um bebé. Nós não fomos feitos para fazer esta coisa de matar pessoas, eu juro. Recuem. É um grande erro." - Barbara Kingsolver 

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