domingo, 9 de outubro de 2016




"Não sei o que nos espera no fim da curva. Estou tão assustada como as outras pessoas, e já a sofrer: o fim da Natureza e da biodiversidade, da segurança e do privilégio de viajar; temos perdas para chorar muito maiores do que o fim das carrinhas desportivas tal como as conhecemos. Podemos estar já a olhar para o fim do mundo, da forma que menos esperamos. Seria uma pura e informal ironia da História se o mesmo germe da varíola, que foi deixado à solta neste continente há duzentos anos com a chegada dos europeus, e que matou rapidamente cerca de 98 por cento da população americana indígena, nos voltasse a visitar com os mesmos resultados. Não parece ser seguro afirmar que nunca iremos saber a moral da nossa história.
O que posso dizer com certeza é que muitas coisas irão mudar para nós, e muito em breve. Construímos o nosso império sobre a presunção da infinidade de certos recursos, que agora nos estão a acabar: mais florestas, mais petróleo facilmente explorado, mais crescimento económico baseado em mercados inexplorados para os nossos produtos. Infelizmente, os nómadas da província de Lorestan podem já estar a comprar tanta Coca-Cola como que alguma vez serão induzidos a querer. «Em breve chegará a época», escreve Wendell Berry, grande profeta da nossa era, «em que não seremos capazes de recordar os horrores do 11 de Setembro sem recordarmos também o inquestionável optimismo tecnológico e económico que terminou nesse dia. Este optimismo assentava na proposição de que estávamos a viver numa 'nova ordem mundial' e numa 'nova economia' que 'cresceria' cada vez mais, trazendo uma prosperidade na qual cada novo incremento 'não teria precedentes'»
Cada vez que leio um argumento a justificar mais perfurações de petróleo em lugares sensíveis, reparo que começa com a advertência «A menos que os americanos estejam dispostos a aceitar uma mudança drástica de estilo de vida». Como se essa fosse a única coisa que nunca poderia acontecer. Como se muitos novos tipos de escassez não estivessem já na alfândega, com chegada marcada, ponto final, para antes de as minhas filhas chegarem à minha idade. Os cientistas têm tentado recordar-nos amavelmente de que o «fóssil» no combustível fóssil não é uma metáfora nem uma comparação. Esse petróleo vai acabar por secar, e nenhum vudu político pode induzir dinossauros ou florestas de fetos pré-históricas a deitarem-se e a apertarem-se para produzirem mais líquido para nós no período de tempo que precisamos. 
Isto já estava escrito há alguns anos, mas nós somos uma nação iletrada no que respeita a ler o que está escrito. Cada vez há mais coisas escritas. Alguma coisa irá eventualmente acabar com a encantadora e enfurecedora ingenuidade dos americanos que nos permite o nosso animado consumo e alegre ignorância da secreta fealdade que nos traz o que queremos. Não estou a dizer que sou a favor da queda; ela aterroriza-me. Estou a dizer que quando o urso de 400 quilos percorre todo o caminho até à última ponta do galho, alguma coisa vai partir-se. A nostalgia por uma ignorância mais antiga não é o cerne desta discussão. Estarmos aqui sentados a comer o mais depressa que conseguimos, enquanto olhamos em volta para o instrumento do nosso fim, também não o é. Esse instrumento poderia ser uma reconstrução guiada pela nossa própria previsão e disciplina, em vez de o ser pelo ódio de outra pessoa qualquer.
Entrar na guerra faz parte da natureza humana, dizem, e é a única maneira de estabelecer uma escassez de recursos. Não acredito. Existe a abordagem aventureira de Jasão contra os guerreiros dos dentes de dragão, e existe a abordagem mais intuitiva de Medeia, e ambas - para que conste - são humanas. Quando começou o mais recente ciclo de bombardeamentos, eu e a minha mãe afirmámos uma à outra: «Quando as dificuldades apertam, parece que os homens vão buscar uma arma e as mulheres procuram na despensa.» Ligeiramente mais de metade de nós aqui em baixo na Terra somos da persuasão da despensa, e não chegámos todos aqui por sermos eficazes assassinos. Por aqui refiro-me a encarregues do lugar, numerando biliões e vingando a nossa vontade no planeta. Chegámos aqui por sermos animais sociais, animais comunicativos, animais cooperativos, animais bípedes, utilizadores de ferramentas, poupadores de sementes, selectores de companheiros reservados, detentores de vida, jovens de grande cérebro que parecem determinados a suplantar a geração dos seus pais, e muitas vezes conseguem-no. Somos um animal demasiado esperto, parece-me a mim, para nos matarmos agora.
Eu fui feita para isto, para me sentar aqui nesta ponta aguçada e serrilhada entre dois séculos quando tanto de tudo se equilibra na balança. Posso escolher entre deixar tudo pendurado ou aguentar, e eu aguento porque nasci para o fazer, como todas as outras pessoas. Insisto que posso fazer alguma coisa certa se tentar. Insista também você em como também o pode fazer, em que, na verdade, já o está a fazer, e há muito mais de onde este veio. 
Essa maneira de pensar não parece ser a moda neste ponto aguçado e serrilhado do tempo, em que o poder é poderoso e a moda é a frieza e a escuridão e a desconfiança. Mas, ainda assim, suspeito que o mais profundo de todos os desejos humanos, lá em baixo no chão da alma, debaixo dos tapetes dispersos de luxúria e sede e fome, é o desejo de encaixe de se ser compreendido. E a vida é um trilho lento pelo caminho que se dirige ao reconhecimento de que esse desejo não vai ser cumprido. É esse o curso de toda a sabedoria: outros verão a frente e as costas, mas é cá dentro que todos vivemos, naquele lar em que baterá sempre apenas um coração. Aí temos de fazer as pazes com tudo o que precisamos de sofrimento, e com tudo o que alguma vez poderemos conhecer de divino, seja qual for o nome que lhe dermos.
O que consigo encontrar é isto, e assim tem de ser: conquistar o meu próprio desespero fazendo o pouco que posso. Roubar a trovoada e metê-la no bolso para a guardar para a longa seca. Sonhar na cor verde, saboreando o fim do perigo. Não me peçam provas. A possibilidade de um futuro melhor, a existência de Deus - são apenas duas de muitas coisas que caíram na categoria que eu rotularia como «impossível de provar, e a prova não é o que interessa». A fé tem uma vida própria. 
Talvez os pessimistas estejam no topo do jogo, e talvez não estejam. Talvez não custe nada ter esperança, e nós que a temos talvez sejamos capazes de ter vidas melhores e mais honestas como crentes do que teríamos como pessimistas. Talvez Deus seja apenas um tipo no autocarro. Talvez sejam realmente as colheres de pau da sua mulher aquelas que estão ali penduradas na latada do meu jardim, à espera de me distribuírem um pouco de graça no dia em que precisar dela. Talvez a vida não melhore mais do que isto, nem piore mais, e aquilo que temos é apenas o que estamos dispostos a encontrar: pequenos milagres, onde eles aparecem." - Barbara Kingsolver

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