quinta-feira, 19 de outubro de 2017





"A maioria das pessoas vive infeliz. Cresce, depressa demais, das fantasias da adolescência, em torno da sexualidade, para as experiências de pais. No entretanto, há a formação académica, o deslumbramento do primeiro emprego, as responsabilidades que ele exige, o furor dum carro novo. E a casa, claro. A maioria das pessoas esquece-se - quase sem dar por isso - que, entre todos os compromissos, estão, também, as respectivas famílias (nem que, por vezes, algumas dessas pessoas estejam, apenas, a um sms de distância). E esquece-se de namorar (todos os dias). E de brincar: com as crianças e sem elas. Esquece-se de descansar. E de cultivar a sensibilidade. Quando dá por si, a maioria das pessoas tem a hierarquia das suas prioridades virada do avesso. Muito depressa o trabalho aparece em primeiro lugar, filhos em segundo, família, logo a seguir. A maioria das pessoas vive infeliz porque acaba por não gerir a vida. (Não que ela precise duma gestão sofisticada. Precisa, mais, de ser compreendida. Para que, depois, pareça andar em piloto automático.) Mas, com tanta atribulação de compromissos fora do lugar, é fácil que todos nós nos descuidemos nos pequenos gestos com que se tecem as relações. (Qual foi a última vez, no último mês, que disse a uma pessoa importante para si que gosta dela? Ou que a abraçou, só porque sim? Todos nos refugiamos da mesma forma, não é? «Mas ela sabe!...» Saberá?...) Descuidos acumulados geram desamparos. E os desamparos acumulados são os melhores amigos da depressão. Por outras palavras, todos nos deprimimos por falta de mimo. Ou por falta de colo, simplesmente. Em resumo: por mau uso do nosso coração. E deprimir, veja bem, não supõe que andemos a chorar, continuadamente. Mas, pelo contrário, que hoje deixemos de tomar o pequeno-almoço numa esplanada, com o jornal esparramado (se isso nos dá prazer). Amanhã, que facilitemos no modo como nos abonecamos. E que, depois, embrulhemos aquilo que sentimos em silêncio. Quando passamos a ter uma relação deprimida com a vida, pergunta você? Quando, em vez de sentirmos que o melhor do mundo é o futuro, temos saudades daquilo que já fomos. A depressão é amiga duma imensíssima maioria silenciosa de pessoas... Mas como se pode amar e sentirmo-nos deprimidos, ao mesmo tempo?

Como se só isso não fosse, só por si, uma factura que chegasse, todos somos, profundamente, atentos e por demais sensíveis. (Não sei quem inventou esta epidemia atípica de défice de atenção que, pelos vistos, parece assolar todas as crianças. Receio que tenha sido dos poucos distraídos que talvez existam por aí.) Registamos tudo sobre quase tudo. E, registamos mais, ainda, quando isso nos chega pela mão de quem é precioso ou, simplesmente, importante (por pouco que seja) para nós. Pensamos sem querer e sem dar por isso. E como falamos de uma forma complicada, passamos a vida a «varrer» o que sentimos para debaixo do tapete. Sempre que desistimos de falar acerca do que sentimos desistimos mais um bocadinho dessa pessoa. E afastamo-nos dela mais 10 centímetros. Pelo menos. E cresce em nós a despensa dos pensamentos por pensar. (A ela podemos, com todo o rigor, chamar angústia. Ou sofrimento mental. Se preferir.)

O silêncio é o melhor amigo da angústia. (Se quiser chamar à angústia ressentimentos, pode fazê-lo, porque é disso que se trata. São sentimentos que foram atropelados pela falta de palavras e ficaram na tal despensa dos pensamentos por pensar. Mas como dos ressentimentos ao rancor há um único degrau a separá-los, amealhamos pequenas iras que jogamos, a pretexto de um motivo ridículo, dois anos depois. E, quando é assim, divorciamo-nos, em suaves prestações. Nunca nos divorciamos sozinhos, como vê. Mas divorciamo-nos por falta de namoro e de colo. E - sempre! - por mútuo consentimento.)

São muito raras as relações que começam por ser um grande amor. Relações onde alguém saiba sempre um pouco mais de nós do que nós próprios. Mas, mesmo que comecem assim, os descuidos e os desamparos fazem com que a maioria das relações amorosas se vá fraternizando. E, pior, faz com que (muitas vezes) deixem de ser relações fraternas e se transformem em relações parentificadas. Vou-me repetir: qual foi a última vez, no último ano, que dissemos a quem nos ama, «Gosto de ti!», só porque sim? E a última em que abraçámos, com força, essa pessoa, num dia com tudo o que um dia tem para ser banal? Sempre que poupamos nos gestos divorciamo-nos devagarinho. (Era mais isto que eu queria dizer.)

Na verdade, a maioria das pessoas sente, muito depressa, que fica encurralada em compromissos. Vive como se fosse morrendo, para a vida, todos os dias. E, pior, sente (em inúmeras circunstâncias) que dorme com o «inimigo». A maioria das pessoas sente que passou, cedo demais, das fantasias em torno da sexualidade, da adolescência, para a pré-reforma com a vida. Sem nunca namorar com ela. Como se muito cedo se tivesse tornado, para sempre, tarde demais.

Somos todos um bocadinho assim, acredite. Até à altura em que um rasgo de sabedoria, uma nova pessoa na nossa vida, ou uma perda, por exemplo, façam de «supercalifragilisticexpialidocious»! E se inicie, com isso, a nossa redenção.

É por tudo isto que eu acho que devia ser proibido casar com o primeiro namorado. E, já agora, casar para sempre. Se errar é aprender, porque é que há quem queira que acertemos nas relações amorosas à primeira? Como em tudo o que nos torna sábios, precisamos de errar para aprender. E precisamos de namorar para descobrir, em função do que vivemos, o perfil da pessoa que queremos para nós. As qualidades descobrem-se com a experiência! Não, não tenho, como suponho que imagina, nada contra as relações para sempre. Mas tenho tudo contra as relações onde, depois de alguém dizer: «Amo-te!» (duma forma que nem sempre o outro consegue entender) está autorizado a desmazelar-se para os mimos. Porque é que depois de uma pessoa aceitar um namoro a outra está autorizada a poupar nos galanteios? E porque é que se distrai e desampara? E porque é que deixa de ser gentil e se descuida?

Todas as relações morrem. Todas. Sobretudo as mais preciosas. Porque só a essas pessoas exigimos que nos dêem, para sempre, os gestos e as palavras ao nível de tudo o que já deram. Ora, quando alguém nos decepciona, morre um bocadinho dentro de nós. (A forma habitual dessa morte silenciosa é: «Apetecia-me dizer-lhe duas coisas... Mas não vale a pena. Sei que não vai entender...») Quando alguém morre um bocadinho dentro de nós morremos para a vida nesse morrer. Assim serão as relações amorosas: ou nos dão vida ou tiram vida. Nunca têm como nos fazer «desfelizes», simplesmente.

Somos sempre tão pequeninos diante do amor! Não que ele seja uma tarefa desmedida. Pelo contrário. O amor é, entre todas as relações, seguramente, a mais simples. Mas atropelam-se tantas páginas em branco nos nossos gestos! Fomos tão ensinados a ser tão pouco transparentes, tão pouco espontâneos e tão pouco autênticos que são as palavras que não dizemos, quando sentimos, que nos azedam para o amor e nos trazem muitos «nunca mais». Todos nós nos desencontramos para o amor. Porque toda a verdade num gesto só é muito difícil! E porque somos mais vezes sabichões que sábios. Sobretudo, diante do amor. E porque pedimos desculpa poucas vezes. É difícil termos uma experiência riquíssima e complexa, e sermos claros e expeditos, sempre que a confiamos aos outros! É difícil sermos sábios e sermos simples. E será por isso que, à medida que crescemos, estamos mais habilitados para amar e mais distanciáveis do amor.

A mim parece-me que, sempre que nos sentimos amados, nos tornamos um bocadinho egocêntricos. Quando nos sentimos o melhor do mundo para alguém compreende-se que seja assim. Mas, mais tarde ou mais cedo, as pessoas que nos amam desencontram-se do nosso crescimento e, no lugar do seu amor, deixam, sobretudo, descuido e desamparo. Sempre que queremos ser os melhores do mundo deixámos de nos sentir o melhor do mundo para alguém. E ninguém nos avisa. E, porque fomos mimados, logo imaginamos que a vida está apinhada de fadas-madrinhas. E que, sem que seja preciso criarmos oportunidades para o amor, ele virá, acidental, ao nosso encontro. Mas, histórias à parte, dar oportunidades ao amor é não permanecer barricado nos mesmos grupos de amigos que vêm da escola, nem nas relações de trabalho, de todos os dias. As universidades casam as pessoas e um colega de trabalho encarrega-se, muitas vezes, de as divorciar, porque as pessoas dão poucas oportunidades ao amor. Porque se aventuram pouco por grupos diferentes: sejam uma escola de dança, um grupo de voluntariado ou uma pós-graduação qualquer.

Eu acho que, à medida que nos tornamos mais velhos, aumentam as probabilidades de encontrarmos «a pessoa» da nossa vida e as probabilidade de ficarmos sozinhos. A mim preocupa-me que, quando se fala do amor, se fale quase sempre do passado e quase nunca do futuro. Crescer, para muitas pessoas, é uma espécie de promoção pelas escadas abaixo. E é por isso que o amor, para a maioria delas, é um amor triste. Não fossem os filhos, de quem se vão desencontrando tantas vezes, e o amor transformava-se num lugar perdido lá para trás. Ora, como se pode amar querendo que o tempo volte para trás?

Receio que, à parte do amor dos pais, as pessoas sintam que morreram para o amor cedo demais. Por mau uso da sabedoria, certamente. Às vezes, falam dessas experiências, ainda assim, duma maneira ternurenta. Sobretudo as mulheres. Mesmo aquelas que são amigas da estatística. Sempre que têm uma relação que correu mal, e outra relação que correu mal e outra relação que correu mal afirmam - com a propriedade que só uma amostra representativa (!) de três pessoas lhe traz - que «os homens são todos iguais»! Porque vivem carcomidas pela culpa, jogam-na toda sobre os outros. Mas somos todos um bocadinho assim! Muitas pessoas que não acreditam no amor vivem casos de fim de semana. E isso é mau. Sobretudo quando, de relação em relação, se certificam de tudo o que supunham saber sobre o amor e procuram, sem dar por isso, mais quem confirme as suas falhas do que quem interpele os seus sonhos.

Eu acho que a maioria das pessoas se sente infeliz porque, no fundo, sofre de tanto cultivar um amor sem objecto. Um amor à procura de um amante. Acho, mesmo, que a maior parte das pessoas não é amável, todos os dias, porque vive - com uma culpa secreta - esses falhanços. Só não somos amáveis para os outros quando nos sentimos mal amados por quem amámos. Não sendo amáveis nunca seremos amantes. Amáveis, no sentido de nos abrirmos, sem reservas, para o amor. Amantes como forma de darmos, sem reservas, amor. E é por tudo isto que sempre que chegamos a casa e sentimos que não temos ninguém à nossa espera, somos infelizes. Somos infelizes quando descobrimos, de surpresa, que não há ninguém que nos faça voltar para casa um pouco mais depressa." - Eduardo Sá

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