segunda-feira, 26 de setembro de 2016




"Foi isto que mudou para nós naquele dia (11 de Setembro): não o que sabemos, mas como nos sentimos. Sempre vivemos num mundo de mágoa e calamidade constantes, mas a maioria de nós nunca teve de dizer antes: podia ter sido eu. Eu e as minhas filhas naquele avião, o meu marido naquele edifício. Eu pisei aquele mesmo passeio, provavelmente sentei-me num daqueles aviões. Fomos nós, americanos no trabalho, de férias, a caminho de casa, ou apenas a passar de um edifício para o outro. Vivos, depois mortos. 
É provavelmente apenas humano admitir que a morte de um estranho é mais arrasadora quando podemos imaginá-la como a nossa própria morte. Todos nós começámos a dizer, naquela semana: «Esta foi a coisa pior que alguma vez aconteceu.» Eu sei que devíamos ter acrescentado a nós, porque já aconteceram desastres piores - se o «pior» puder ser medido somente pelo número de mortes - em praticamente todos os outros países do mundo. Dois anos antes, um terramoto na Turquia tinha morto três vezes mais pessoas num dia, bebés e mães e trabalhadores. No Novembro antes disso, um furacão que atingiu as Honduras e a Nicarágua e que matou ainda mais, enterrou aldeias inteiras e apagou linhagens familiares; ainda agora, as pessoas acordam lá de mãos vazias. Alguns desastres são apelidados de «naturais» (embora tenha sido a guerra que deixou a Nicarágua tão vulnerável) e no entanto as suas vítimas são tão inocentes como as nossas do 11 de Setembro, e igualmente mortas. De que fim do mundo devemos falar? Apenas do tipo assassino? Há sessenta anos, aviões japoneses bombardearam rapazes da marinha dos EUA que estavam a dormir em navios nas calmas águas do Pacífico. Três anos e meio depois, aviões americanos bombardearam uma praça no Japão onde homens e mulheres iam para o trabalho e crianças em idade escolar estavam a brincar, e morreram mais humanos ao mesmo tempo do que alguém alguma vez pensara ser possível: setenta mil num minuto. Imaginem, agora que podemos - agora que temos um número com o qual comparar -, setenta mil pessoas mortas num minuto. Depois, o dobro dessas, lentamente, das entranhas. 
Ao que parece, não há dias piores. Há dez anos, numa madrugada de Janeiro, caíram bombas do céu e provocaram o desmoronamento de grandes edifícios na cidade de Bagdade - hotéis, hospitais, palácios, edifícios com mães e soldados lá dentro - e aqui no lugar que eu quero amar mais, vi pessoas a congratular-se com isso. Em Bagdade, os sobreviventes fecharam os punhos ao céu e usaram a palavra mal. Todos nós tendemos a elevar as vidas dos nossos compatriotas a um nível sagrado, pensando que os nossos próprios cidadãos são mais dignos de pesar e levados com menos aceitação do que as vidas num outro lugar. Quando muitas vidas são perdidas ao mesmo tempo, as pessoas juntam-se e pronunciam palavras como odioso e horror e vingança, presumindo fazer com que este momento horrível fique de alguma forma afastado das maneiras como as pessoas morrem um pouco todos os dias em todo o mundo de doença ou de fome. Mas os corações despedaçados não são recompostos nesta cerimónia porque, na verdade, cada dia que acaba é, em última análise, o seu próprio resultado - mesmo que de alguma forma todas as vidas sejam iguais, uma luz a apagar-se que sofria para arder mais tempo. Mesmo que nunca tenha tido a oportunidade de amar a luz que se apagou, vai sentir a sua falta. Devia; vai ter de sentir. Suportamos este mundo e tudo o que está errado nele ao continuarmos a considerar a vida preciosa, sempre, e ao recomeçarmos.
Durante a minha vida, argumentei contra o genocídio, juntei-me a campanhas de ajuda humanitária, enviei sementes para lugares vítimas de fome. Enlutei-me pelos meus companheiros humanos de todas as formas que conheço. Mas nunca antes as suas mortes específicas tinham entrado de modo tão persistente nos meus sonhos. Desta vez fomos nós, o que nos deixou a tremer, levando a minha filha mais nova a perguntar calmamente: «Vai-me acontecer a mim, mamã?» Compreendi com a mais profunda tristeza que alguma vez conhecera que esta era a pergunta errada, e, sempre fora. Tinha estado sempre a acontecer-nos a nós - na Nicarágua, no Sudão, em Hiroxima, naquela noite em Bagdade - e agora finalmente sabemos o que se sente. Agora podemos aprender, com o sabor do nosso próprio sangue, que todas as guerras são ganhas e perdidas, e que a perda é uma pura nota aguda de angústia como uma mãe a cantar para uma cama vazia." - Barbara Kingsolver

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