quarta-feira, 7 de setembro de 2016




"Todos nós podemos bem sentirmo-nos perplexos, ao acordarmos esta manhã para encontrarmos a maior parte dos nossos caminhos e meios investidos nos muros que as nossas nações construíram entre nós e aqueles que desejamos manter afastados. Ao longo da nossa História moderna, demos passos para a construção de fronteiras defensivas com poucas dúvidas na mente, desde as pedras aos tijolos e à argamassa, até às carabinas e ao arame farpado, aos mísseis e tanques e à explosão contida num átomo. E agora, aqui estamos nós, dedicados aos esforços de vigilância, conserto e terror. 
As fronteiras desmoronam-se; não se aguentam sozinhas; temos de escorá-las constantemente. São fortificadas e patrulhadas por homens armados, estas vedações que separam um grupo de elegantes comensais para um lado e as crianças para o outro, cujas pernas magras se curvam como fúrculas, cujos enormes olhos espreitam pelo arame farpado para tanta comida - não há nenhum muro suficientemente alto que compense esta vizinhança. Porque isto, é claro, é o que as vedações dividem. Provavelmente, começámos com noções mais teóricas de pureza étnica - o desejo de manter as maçãs afastadas dos nossos pinheiros - e, durante a maior parte do século passado, racionalizámos os nossos muros em termos de ideologia, mas a Cortina de Ferro está agora dramaticamente caída. Agora moldámos as fronteiras desmoronantes da Guerra Fria numa forma de divisão totalmente nova, em especial entre ricos e pobres. Esse abismo continua a crescer; um quarto dos pobres do mundo são agora mais pobres do que eram há quinze anos, tendo lutado apenas para perder terreno. 
A rígida fronteira entre o ter e o não ter é ainda defendida com armamento, mas agora é também atravessada por um mundo dançante e ilusório de desejos materiais. A passar por todos os muros estão feixes electrónicos que criam uma peça fantasma de desejo encenada pelos titereiros do comércio globalizado, que financiam a sua publicidade em cada ano com mais de cem dólares gastos com cada homem, mulher e criança, deste planeta. «Este mundo de desigualdade é também um mundo de solidão», escreve Eduardo Galeano, no qual multidões de desesperados são levadas a «confundir o ser com o ter». E condenadas por não ter.
Eu sei, já alguém disse isto antes. As pessoas disseram-no há mil anos, e têm-no dito quase em cada minuto desde então. Os pais da minha geração disseram-no durante a crise dos mísseis de Cuba, e os pais deles disseram-no depois de Pearl Harbor. As mães disseram-no quando viram os seus filhos partirem para lutarem na Guerra Civil, e disseram-no cem anos depois, quando as crianças de pele escura tiveram de ser escoltadas por guardas armados pelas portas de uma escola só de brancos. O dia em que Martin Luther King Jr. foi assassinado, ou Gandhi, ou Jesus, ou Monsenhor Óscar Romero, ou o dia em que os monges budistas se imolaram no Vietname enquanto o mundo estupefacto observava - todos eles foram o pior que podia ter acontecido. Os eruditos da História gostam de ir buscar declarações de consternação de tempos imemoriais para nos provarem que não há nada de novo debaixo do sol: o lobo esteve sempre à porta e as pessoas tenderam sempre a destruir-se umas às outras, exactamente como acontece agora.
Os historiadores estão certos, não é novidade este sentimento de desespero em relação a um mundo enlouquecido por desejos cruéis e punitivos. Não é novidade que ambos os lados se atirem para a presunção fundamentalista de serem eles contra os maus. Nem sequer é novidade que o mundo possa desmoronar-se e tornar-se permanentemente inabitável numa questão de minutos - a crise dos mísseis de Cuba era acerca disso. O que é novidade é que agora sabemos tantas coisas sobre o mundo, ou, pelo menos, sobre a parte dele que está a explodir de forma mais pitoresca num dado dia, que ficamos com uma sensação desesperada de todo ele estar a explodir, a toda a hora. Pelo que eu posso dizer, é essa a intenção e o propósito das notícias na televisão. Vemos tanta coisa, compreendemos tão pouca, e, ao mesmo tempo, é-nos dita tanta coisa sobre O Que Pensamos, como uma população sondada minuto a minuto, que ouvirmos os nossos corações começa a parecer um esforço irrelevante.
Eu tento com todas as minhas forças ignorar tudo isto, não acreditar em sondagens nem permitir que a TV vocifere perto da minha cara. Há momentos em que tenho de parar de receber mais notícias, para que possa considerar o que já reuni até então e prestar atenção à minha própria comunidade, uma vez que é o único sítio em que posso juntar um grupo  de pessoas para lidar com os nossos próprios desastres do dia. Por vezes, tenho de fazer um simples e sincero esforço para fazer apenas isso, para me sentir menos como uma protecção de porta a bater durante um furacão.
E isso é que é realmente novidade desde tempos imemoriais: a sensação de que os problemas são tão vastos que perdemos qualquer esperança de alterar o rumo das coisas. Durante eras anteriores de desgraça conspícua - a Peste Negra, por exemplo -, as pessoas sentiram certamente que o mundo estava a acabar, mas o fim que elas provavelmente imaginaram era mais pequeno em termos de escala, consistindo nelas próprias, nos seus vizinhos, em Deus. Não podiam imaginar um naufrágio tão terrível como o fim da raça humana num planeta tornado esquálido pela própria mão do Homem; duvido que já tenham percebido a magnificência da nossa história, ou a infinidade da nossa estupidez.
O sentimento que mais me aterroriza não é o medo mas sim o desespero - a sensação indistinta e opressiva de quanto mais as coisas mudam, mais se mantêm na mesma; que cada um de nós com um coração congelado «como um selvagem armado com uma pedra antiga» vai continuar a mover-se na escuridão, a levantar pedregulhos, a patrulhar os firmamentos da raiva divisória. Eu não entro suavemente nessa noite em particular; enraiveço-me e enfureço-me contra a morte de toda a esperança. Admito que exista uma maldade crescente neste mundo, e que alguns corações estão já tão endurecidos que não há forma de serem apaziguados. Alguns muros crescem mais em cada ano, é verdade. 
Mas outros desmoronam-se. As pessoas que disseram que o céu iria cair e Deus iria chorar se os seus filhos e filhas tivessem de sentar-se na mesma sala de aula que as crianças de pela negra estavam erradas: o céu não caiu e se Deus chorou ou não é uma questão de opinião pessoal. A Terra mudou debaixo dos nossos pés, vezes sem conta, enquanto as pedras dos nossos paradigmas se estatelavam no pó." - Barbara Kingsolver

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